A bela Aalesund, de 35.000 habitantes, é a capital mundial do bacalhau, e o Brasil o maior consumidor em todo o planeta desse peixe salgado e seco. Os barcos modernos, de 200 a 300 toneladas, atracam diretamente nos cais construídos diante das fábricas e descarregam a carga preciosa. Nas caixas há peixes de várias espécies e tamanhos, o que permite visualizar de imediato que o bacalhau não é um tipo específico de peixe, e sim o resultado do processo de salga e secagem. Chegam peixes pescados nas águas geladas do Alasca, do Canadá, da Islândia e da Groenlândia.
Mas hoje as frotas pesqueiras encontram o tipo mais cobiçado, o cod gadus morhua, praticamente só nos mares da Noruega. O país, cujo nome quer dizer "caminho do norte", pela proximidade com o Pólo Norte, tem o litoral recortado por arquipélagos e ilhotas. O mar penetra no continente, desenhando uma infinidade de canais, os fiordes, de águas claras e limpas, rodeados de montanhas com cumes nevados. A corrente do Golfo, mais quente, banha as costas norueguesas. Favorece a diversidade da vida marinha e sobe até as Ilhas Lofoten e o Mar de Barents, de águas frias. Nesse ambiente privilegiado nasce o cod gadus morhua, que merece o título de legítimo bacalhau, pois tem a carne mais saborosa e macia, que se solta em lascas e desmancha na boca.
As origens do bacalhau são múltiplas. Os vikings já secavam o peixe ao ar livre para suas expedições, e disso há registros históricos desde o século IX. O produto, como o conhecemos atualmente, surgiu no norte da Espanha, entre os Bascos, no século seguinte. Os portugueses o descobriram na época das grandes navegações, levado nas caravelas que chegaram às Índias e ao Brasil. Hoje, Portugal também é grande produtor e o segundo principal consumidor da iguaria, encontrada lá em centenas de deliciosas receitas. Um comerciante holandês iniciou a produção na Noruega em 1692 e, de lá para cá, o país se tornou o maior fornecedor do mundo, responsável por 77.000 toneladas a cada ano. Suas fábricas processam peixes recolhidos em diversas regiões do Hemisfério Norte. Tradicionalmente, quatro espécies se prestam ao feitio do bacalhau, dando origem a cinco tipos distintos. As diferenças físicas entre elas são notadas principalmente no desenho da cauda e na coloração. O saithe tem a carne escura e de sabor mais forte. Desfia com facilidade, o que o torna recomendável para bolinho de bacalhau e ensopados. É o campeão de vendas no Nordeste brasileiro. O zarbo, normalmente de tamanho menor que os outros, é intermediário na cor e no sabor. O ling é um peixe estreito e possui carne mais branca. Já o nobre cod se divide em dois. O cod gadus macrocephalus vem da América do Norte. Chamado bacalhau do Pacífico, mostra carne branca, às vezes fibrosa. No topo da lista fica o cod gadus morhua, pescado no Atlântico Norte, cuja carne é tenra, com mais gordura e sabor. Outros peixes não se prestam a virar bacalhau. Alguns não possuem estrutura interna adequada, têm espinha dorsal muito larga ou não apresentam carne suficiente. "O processo também não dá certo com peixes muito gordurosos", explica o experiente Lars Naero, ex-exportador e responsável pelo pitoresco Museu da Pesca de Aalesund, que reproduz o cenário de um armazém antigo e o interior das velhas fábricas.
O método para processar o bacalhau é praticamente o mesmo em todas as empresas. Os peixes, que normalmente chegam congelados, passam por descongelamento e entram depois por uma máquina, que os abre ao meio e retira as vísceras. Seguem por uma esteira, onde um sensor eletrônico faz a primeira separação por peso. São dispostos por camadas em grandes caixas plásticas, cada uma delas borrifada com uma nuvem de sal grosso. A salga provoca a saída da água do corpo dos peixes, formando uma espécie de salmoura na qual fazem a cura por duas a quatro semanas, dependendo do tamanho e do peso. Completada essa etapa, os peixes são colocados em palets aramados para iniciar o processo de secagem. Ficam de uma a duas semanas em temperatura ambiente e na seqüência permanecem mais uma semana na câmara de secagem propriamente dita, por onde circula ar quente. Por fim, é feita nova classificação e vão para a embalagem. Embora os procedimentos sejam semelhantes em quase todas as casas, não importa se grandes ou pequenas, alguns produtores se diferenciam pela escolha da matéria-prima e preocupação com a qualidade, sublinhada em detalhes importantes.
Comprar bem tem seus segredos, para não cair em armadilhas. É importante escolher um fornecedor idôneo. Nem sempre é fácil identificar o cod gadus morhua, especialmente se for apresentado apenas o lombo, a parte mais graúda. E não basta pedir pelo Porto ou Imperial, pois, como vimos, qualquer bacalhau pode ter esse qualificativo, desde que seja avantajado. Os brasileiros também preferem a carne branca, o que leva a enganos. O cod gadus morhua, por ser mais gorduroso, nem sempre tem coloração clara. Aliás, o bacalhau mais caro em Portugal é o "cura amarelo": o peixe fica mais tempo no sal e adquire essa cor. O gosto é ótimo, mas, por desconhecimento, não faz o menor sucesso aqui. É interessante notar ainda que na própria Noruega o consumo é pequeno. Os noruegueses gostam mais do peixe fresco. Os restaurantes locais oferecem uma espécie de bacalhau à norueguesa, com legumes. Mas, de modo geral, as receitas remetem sempre a outras culturas, como bacalhau à portuguesa, com batata; à italiana, cozido e com molho pesto; e, o mais popular, o espanhol à moda de Biscaia, com molho de tomate. Com a herança portuguesa que temos, podemos dizer que nossa culinária é muito mais generosa quando o assunto é bacalhau.
O MELHOR DO BACALHAU
O peixe das águas norueguesas que se converte no bacalhau mais cobiçado se chama cod gadus morhua e pesa em média 5 quilos. Já foi maior. O Aquário de Aalesund informa que a espécie pode atingir até 1,8 metro de comprimento e 55 quilos. Alimenta-se de crustáceos e pequenos moluscos. Nos barcos pesqueiros, a cabeça do peixe é cortada, pois pesa muito e tem menor valor que a carne. Não compensaria transportá-la. Por isso, existe a brincadeira de que nunca se viu cabeça de bacalhau. Mas ele tem cabeça, sim, e até uma barbicha, que ajuda a diferenciá- lo de outras espécies.
Sua pesca acontece de outubro a fevereiro. A principal área fica nas Ilhas Lofoten, acima do círculo polar, onde nessa época do ano quase não há luz solar. Ali também ocorre todos os anos a desova dos peixes. Normalmente, a corrente do Golfo carrega os alevinos para o Mar de Barents. Há dois tipos do precioso cod. Um penetra pelos fiordes, o outro é migratório. Ambos atingem a maturidade sexual entre os 6 e os 15 anos.
A foca é seu principal predador, fora o homem. Cientistas estimam que os estoques atuais de cod adulto chegam a 70 000 toneladas nos mares do Norte. É bem menos que no passado, mas os pesquisadores avançam nas tentativas de reproduzir o peixe em cativeiro.
Publicada na edição 181 (Novembro/2007) da Gula
Mas hoje as frotas pesqueiras encontram o tipo mais cobiçado, o cod gadus morhua, praticamente só nos mares da Noruega. O país, cujo nome quer dizer "caminho do norte", pela proximidade com o Pólo Norte, tem o litoral recortado por arquipélagos e ilhotas. O mar penetra no continente, desenhando uma infinidade de canais, os fiordes, de águas claras e limpas, rodeados de montanhas com cumes nevados. A corrente do Golfo, mais quente, banha as costas norueguesas. Favorece a diversidade da vida marinha e sobe até as Ilhas Lofoten e o Mar de Barents, de águas frias. Nesse ambiente privilegiado nasce o cod gadus morhua, que merece o título de legítimo bacalhau, pois tem a carne mais saborosa e macia, que se solta em lascas e desmancha na boca.
As origens do bacalhau são múltiplas. Os vikings já secavam o peixe ao ar livre para suas expedições, e disso há registros históricos desde o século IX. O produto, como o conhecemos atualmente, surgiu no norte da Espanha, entre os Bascos, no século seguinte. Os portugueses o descobriram na época das grandes navegações, levado nas caravelas que chegaram às Índias e ao Brasil. Hoje, Portugal também é grande produtor e o segundo principal consumidor da iguaria, encontrada lá em centenas de deliciosas receitas. Um comerciante holandês iniciou a produção na Noruega em 1692 e, de lá para cá, o país se tornou o maior fornecedor do mundo, responsável por 77.000 toneladas a cada ano. Suas fábricas processam peixes recolhidos em diversas regiões do Hemisfério Norte. Tradicionalmente, quatro espécies se prestam ao feitio do bacalhau, dando origem a cinco tipos distintos. As diferenças físicas entre elas são notadas principalmente no desenho da cauda e na coloração. O saithe tem a carne escura e de sabor mais forte. Desfia com facilidade, o que o torna recomendável para bolinho de bacalhau e ensopados. É o campeão de vendas no Nordeste brasileiro. O zarbo, normalmente de tamanho menor que os outros, é intermediário na cor e no sabor. O ling é um peixe estreito e possui carne mais branca. Já o nobre cod se divide em dois. O cod gadus macrocephalus vem da América do Norte. Chamado bacalhau do Pacífico, mostra carne branca, às vezes fibrosa. No topo da lista fica o cod gadus morhua, pescado no Atlântico Norte, cuja carne é tenra, com mais gordura e sabor. Outros peixes não se prestam a virar bacalhau. Alguns não possuem estrutura interna adequada, têm espinha dorsal muito larga ou não apresentam carne suficiente. "O processo também não dá certo com peixes muito gordurosos", explica o experiente Lars Naero, ex-exportador e responsável pelo pitoresco Museu da Pesca de Aalesund, que reproduz o cenário de um armazém antigo e o interior das velhas fábricas.
O método para processar o bacalhau é praticamente o mesmo em todas as empresas. Os peixes, que normalmente chegam congelados, passam por descongelamento e entram depois por uma máquina, que os abre ao meio e retira as vísceras. Seguem por uma esteira, onde um sensor eletrônico faz a primeira separação por peso. São dispostos por camadas em grandes caixas plásticas, cada uma delas borrifada com uma nuvem de sal grosso. A salga provoca a saída da água do corpo dos peixes, formando uma espécie de salmoura na qual fazem a cura por duas a quatro semanas, dependendo do tamanho e do peso. Completada essa etapa, os peixes são colocados em palets aramados para iniciar o processo de secagem. Ficam de uma a duas semanas em temperatura ambiente e na seqüência permanecem mais uma semana na câmara de secagem propriamente dita, por onde circula ar quente. Por fim, é feita nova classificação e vão para a embalagem. Embora os procedimentos sejam semelhantes em quase todas as casas, não importa se grandes ou pequenas, alguns produtores se diferenciam pela escolha da matéria-prima e preocupação com a qualidade, sublinhada em detalhes importantes.
Comprar bem tem seus segredos, para não cair em armadilhas. É importante escolher um fornecedor idôneo. Nem sempre é fácil identificar o cod gadus morhua, especialmente se for apresentado apenas o lombo, a parte mais graúda. E não basta pedir pelo Porto ou Imperial, pois, como vimos, qualquer bacalhau pode ter esse qualificativo, desde que seja avantajado. Os brasileiros também preferem a carne branca, o que leva a enganos. O cod gadus morhua, por ser mais gorduroso, nem sempre tem coloração clara. Aliás, o bacalhau mais caro em Portugal é o "cura amarelo": o peixe fica mais tempo no sal e adquire essa cor. O gosto é ótimo, mas, por desconhecimento, não faz o menor sucesso aqui. É interessante notar ainda que na própria Noruega o consumo é pequeno. Os noruegueses gostam mais do peixe fresco. Os restaurantes locais oferecem uma espécie de bacalhau à norueguesa, com legumes. Mas, de modo geral, as receitas remetem sempre a outras culturas, como bacalhau à portuguesa, com batata; à italiana, cozido e com molho pesto; e, o mais popular, o espanhol à moda de Biscaia, com molho de tomate. Com a herança portuguesa que temos, podemos dizer que nossa culinária é muito mais generosa quando o assunto é bacalhau.
O MELHOR DO BACALHAU
O peixe das águas norueguesas que se converte no bacalhau mais cobiçado se chama cod gadus morhua e pesa em média 5 quilos. Já foi maior. O Aquário de Aalesund informa que a espécie pode atingir até 1,8 metro de comprimento e 55 quilos. Alimenta-se de crustáceos e pequenos moluscos. Nos barcos pesqueiros, a cabeça do peixe é cortada, pois pesa muito e tem menor valor que a carne. Não compensaria transportá-la. Por isso, existe a brincadeira de que nunca se viu cabeça de bacalhau. Mas ele tem cabeça, sim, e até uma barbicha, que ajuda a diferenciá- lo de outras espécies.
Sua pesca acontece de outubro a fevereiro. A principal área fica nas Ilhas Lofoten, acima do círculo polar, onde nessa época do ano quase não há luz solar. Ali também ocorre todos os anos a desova dos peixes. Normalmente, a corrente do Golfo carrega os alevinos para o Mar de Barents. Há dois tipos do precioso cod. Um penetra pelos fiordes, o outro é migratório. Ambos atingem a maturidade sexual entre os 6 e os 15 anos.
A foca é seu principal predador, fora o homem. Cientistas estimam que os estoques atuais de cod adulto chegam a 70 000 toneladas nos mares do Norte. É bem menos que no passado, mas os pesquisadores avançam nas tentativas de reproduzir o peixe em cativeiro.
Publicada na edição 181 (Novembro/2007) da Gula
Um comentário:
Excelente! :O)
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