terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Filet Mignon - A consagração da maciez

Apesar de nunca ter saído de moda e continuar a ser usado na cozinha francesa clássica, o filet mignon recupera o antigo prestígio e volta a conquistar inclusive os churrasqueiros que haviam deixado de utilizá-lo.
Ele é sinônimo de coisa boa. Quando os adjetivos faltam para definir um produto considerado pelo vendedor melhor que os outros, lá vem a frase para convencer os reticentes: "Mas isso é o nosso filet mignon!".
E tudo parece esclarecido. Além disso, tem a vantagem de ser macio e, portanto, amigo dos dentes, pouco importando se o animal não teve a vida mansa ou uma linhagem nobre. É um músculo particular, localizado abaixo das vértebras lombares do boi. Sua carne se apresenta extremamente tenra porque o animal praticamente não a movimenta durante a locomoção. Mas não constitui unanimidade: muitos costumam ignorar-lhe o sabor por não ter gordura. E torcem o nariz para seu uso no churrasco.
Basicamente, existem dois tipos de cortes o Chateaubriand, obtido na chamada "cabeça" do filet, a parte mais grossa; e o medalhão, na central, bonito como ele só, redondinho e suculento. Aqui se faz necessária uma explicação. Foram os franceses que aperfeiçoaram o corte. Detalhe semântico: "filet mignon", para eles, é o lombo de porco; chamam de "filet de boeuf " a carne objeto deste texto. Pois bem, retirada a pele prateada que envolve a peça inteira, sobra uma carne limpa e apetitosa. Usando o centro dela, que fornece porções uniformes, os franceses criaram três cortes distintos.
Quando deixam o pedaço com no mínimo 1,5 centímetro de altura e entre 110 e 120 gramas, nomeiam-no medalhão. Com 4 centímetros e 180 gramas, passam a denominá-lo tournedos. Se o tamanho dobra, fazendo-o alcançar de 300 a 350 gramas, recebe o nome de Chateaubriand (mais adiante explicaremos por quê).


Os principais cortes do filet: 1 - O filet mingon inteiro e limpo de gorduras e aponevroses. 2 - Picado neste tamanho pode ser usado para fondue ou refogado. 3 - O tradicional Chateaubriand, cortado da "cabeça" do filet. 4 - Do coração do filet, o famoso tournedos. 5 - Um medalhão, retirado mais perto da ponta. 6 - Corte específico para o brasileiríssimo "picadinho"

No vídeo de sua autoria, em que explica o fundamental do churrasco, o mestre paulista GuardaBassi afirma que as peças do filet devem ser temperadas com sal não muito grosso e, segredo maior, colocadas próximas à brasa (15 centímetros) em calor forte, para que fiquem bem "seladas" por fora e suculentas por dentro. Por este termo se entende, para sempre, uma carne mal-passada ou no máximo ao ponto, adverte o churrasqueiro, que fica arrepiado por outro motivo, aquele mesmo, quando ouve de alguém o terrível pedido: "Para mim, bem passada, por favor".
GuardaBassi esteve há pouco tempo (e corajosamente) na "pátria" do churrasco, o Rio Grande do Sul, e conta divertido que, ao longo de sua palestra em Viamão, perto de Porto Alegre, um homem quis saber o que achava do filet mignon na sagrada brasa. Olhares desconfiados foram dirigidos ao indagador, que chamou a atenção por seu sotaque diferente. "Era um carioca no meio de mais de 30 gaúchos, que normalmente acham o filet uma carne de boiola...", sublinhou o mestre paulistano. "Respondi que ninguém faz churrasco tão bem como os gaúchos, mas seu domínio é com os assados, não com os grelhados." E explicou que a convivial cultura gaúcha demanda normalmente grandes peças para muita gente, as quais precisam ser assadas com paciência, enquanto os cortes menores e selecionados vão à grelha por poucos minutos, exigindo muita atenção quanto ao ponto. Caso específico do filet mignon.
A pergunta foi inevitável e a resposta incisiva: "Sim, eu fiz um churrasco com ele e todos gostaram!".

Esse resgate na brasa constitui algo natural para GuardaBassi, lembrando que há 50 anos a qualidade da matéria-prima no Brasil era muito ruim, e esse corte "salvava" a honra dos churrasqueiros. A técnica da maturação da carne e a prática atual do abate de animais mais jovens ainda não haviam "descoberto e amaciado" a picanha, por exemplo, que viria a fazer tanto sucesso. "Naquela época, criava-se boi; hoje, cria-se carne", diz, indicando que a melhoria genética tornou o filet mignon ainda mais interessante do ponto de vista culinário e que a ausência de gordura não o torna menos gostoso que outras partes do boi. E seu sabor bem definido, aliado à extrema maciez, pode dispensar os copiosos adereços que sempre estiveram atrelados a ele.
Muitos pratos à base desse corte bovino ficaram conhecidos ao longo do tempo, oriundos sobretudo da cozinha francesa. Talvez o mais emblemático prato de filet surgiu por obra de Adolf Dugléré, chef do mítico Café Anglais, de Paris, amigo do compositor Giacomo Rossini (1792-1868). Certa noite, o cliente pediu ao cozinheiro, a quem chamava de "Mozart da cozinha", que criasse uma receita na hora, improvisando ali no salão. Uma das versões diz que, meio constrangido, Dugléré afirmou que não conseguiria se concentrar direito ali diante dele, e Rossini exclamou: "Eh bien, faites-le tourné de l'autre coté, tournez-moi le dos". (Pois bem, faça-o virado do outro lado, fique de costas para mim.) Esse tournez-moi le dos teria dado origem, segundo historiadores, ao tournedos, medalhão grafado em alguns de nossos cardápios mais simplórios como "turnedô". No caso do prato inventado por Dugléré, é servido com foie gras e trufas por cima, sobre uma fatia de pão, finalizado com vinho Madeira (ou Porto) deglaçado na frigideira em que a carne foi dourada.

Uma das cenas marcantes do recente filme Piaf - Um Hino ao Amor mostra o primeiro encontro da notável cantora com o grande amor de sua vida, o boxeador Marcel Cerdan, num restaurante fino. Ele desajeitadamente pede sanduíches, e ela recusa, óbvio. Pede o cardápio ao maître e comanda: "Traga-nos dois tournedos Rossini". A cozinha francesa clássica dignificou o filet mignon com molhos de várias naturezas, alguns célebres, como o béarnaise, teoricamente originário de Béarn, nos Pirineus, feito em banho-maria com gema de ovo, manteiga, vinho branco e ervas frescas. Mais exemplos: o filet à Diana, ao molho de mostarda; o dijonnaise, com mostarda, creme de leite, vinagre e molho rôti; e o au poivre, evidentemente coberto de pimenta. Os franceses também conceberam o filet en croûte, com a parte central da peça sendo coberta por massa folhada ou de brioche, levada ao forno e depois fatiada; e o sauce périgueux, em que a carne é "picada" com lâminas de trufa (do Périgord, naturalmente) e servida com um molho em que entram cognac, vinho branco, caldo de carne e... trufas.

O Chateaubriand, como o conhecemos, tem origem imprecisa: pode ter sido criado pelo cozinheiro do antropólogo François René de Chateaubriand (1768-1848), chamado Montmireil, em homenagem ao patrão, ou nasceu em tempos imprecisos na cidade de Chateaubriant, no Departamento do Loire-Atlantique, um dinâmico centro francês de criação de gado bovino que tem uma confraria de vistoso uniforme e muito apetite chamada Academia do Chateaubriant. Lá, esse corte pode ser servido com molho béarnaise ou de vinho tinto, mas aqui no Brasil se tornou conhecido através de uma receita farta, o filet Chateaubriand ao molho Madeira, flambado com vodka, molho do vinho com champignons e acompanhado por arroz à grega e batata palha. Existe também um prato, que fez muito sucesso nas décadas de 50 e 60, hoje meio cafona, elaborado com as aparas do filet - o strogonoff -, antiga glória dos bufês de casamento. Quem não conhece? Por conta de certos exageros do passado, é bem-vinda a redescoberta do filet mignon em sua acepção mais simples, grelhado na brasa. Nesse caso, só com sal - e sem preconceitos.

Publicada na edição 182 (Dezembro/2007) da Gula

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